Uma força-tarefa responsável pelas investigações age de forma deliberada para perseguir um político carismático, acusado de crimes gravíssimos, pelos quais foi condenado por antecedência, antes mesmo de ter o processo transitado. Policiais e procuradores levantaram provas frágeis e comandaram um processo judicial repleto de inconsistências.
Essa é uma história já vista por aí.
No Brasil, as linhas entre justiça e espetáculo frequentemente se confundem, o caso de Wallace Souza — apresentador de TV, deputado estadual e suposto mentor de um império criminoso — desenrola-se como um roteiro real demais para ser ficção. Ou vice-versa.
Bandidos na TV (2019) mergulha nessa história, utilizando a narrativa característica da plataforma para crimes reais: uma gangorra que oscila entre culpa e inocência, episódio após episódio, para manter o espectador preso.
O extravagante apresentador num programa policial que cativou Manaus de 1996 a 2010, construiu uma legião de seguidores ao combater o crime e defender os mais desfavorecidos da cidade. Seu carisma populista o levou à Assembleia Legislativa do Amazonas, mas, em 2009, surgiram acusações de que ele, na realidade (ou na ficção), orquestrava assassinatos para gerar furos de reportagem, inflando a audiência e consolidando sua imagem de justiceiro.
Tendo por base principalmente confissões de criminosos presos, entremeadas por perícias questionáveis e atalhos processuais. Wallace, sua família e aliados rebatem denunciando uma armação, insistindo que o caso era uma perseguição política para eliminá-lo do cenário eleitoral, um clássico retórico, porque representaria uma ameaça às elites locais. O processo judicial esburacado, nunca chegou a um veredicto: sua morte em 2010, doente, por insuficiência cardíaca enquanto estava em prisão domiciliar, extinguiu o julgamento.
Bandidos na TV não pretende resolver um mistério. A intenção é dissecá-lo por curiosidade, apoiando-se na fórmula testada e aprovada da Netflix para sucessos de crimes reais. Cada episódio muda a perspectiva, apresentando novos depoimentos ou imagens de arquivo que retorcem a história.
Em um momento, Wallace é vítima de um sistema vingativo; no seguinte, um clipe cabal e perturbador dele no Canal Livre, regozijando-se com exclusivas de cenas de crime sangrentas, planta a dúvida.
Esse pêndulo narrativo — culpa, inocência, culpa novamente — reflete a ambiguidade do próprio caso, onde a verdade é esquiva.
As implicações mais amplas do caso pairam como fumaça. A história de Wallace expõe a fragilidade de sistemas judiciais em lugares onde vinganças políticas podem se disfarçar de aplicação da lei. Também levanta questões espinhosas sobre o papel da mídia na formação da percepção pública. O Canal Livre não era apenas um programa; mas mais um palco onde, nesse caso, Wallace moldava uma persona que mesclava jornalista, político e vigilante.
A capacidade de atrair atenção — na TV e na política — o tornou alvo tanto de adoração quanto de suspeitas. Em uma região onde o poder muitas vezes flui por clientelismo e intimidação, a linha entre expor o crime e explorá-lo se torna tênue.
A máquina de narrativas da Netflix amplifica essa nebulosidade, e Bandidos na TV não é exceção.
Os documentários de crimes reais da plataforma, de Making a Murderer a The Staircase, prosperam em uma estrutura narrativa que trata a ambiguidade como um gancho. Essa abordagem de gangorra — alternando entre versões concorrentes da verdade — deve tanto ao drama seriado quanto ao jornalismo.
Em Nisman: O Promotor, a Presidente e o Espião, uma série argentina sobre a morte em 2015 do procurador Alberto Nisman, o pêndulo oscila entre suicídio e assassinato, com cada episódio adicionando intrigas para manter o espectador intrigado, ampliado pelo drama político argentino e da então presidente Cristina Kirchner. Pesadelo Americano usa a mesma tática, distribuindo revelações para sustentar a tensão. O efeito é magnético, mas manipulador, transformando tragédias do mundo real em quebra-cabeças que priorizam o engajamento sobre um vaticínio deliberado, que certamente está ali, mas na forma de um subtexto.
Essa fórmula reflete uma mudança cultural mais profunda. Séries de crimes reais não apenas relatam; elas “performam”. Ao convidar a audiência a bancar suas próprias conclusões e brincar de detetive narrativo, contornam a complexidade de respostas definitivas.
No caso de Wallace, a ausência de um veredicto não deixa de ser uma vantagem, não um defeito. Bandidos na TV se apoia na especulação sem comprometer uma conclusão. Essa abordagem ressoa com um público acostumado a consumir narrativas fragmentadas, onde a verdade é menos importante que a jornada performática.
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