A abundância como heresia progressista

Reconsiderar a capacidade de visualizar um futuro tangível

Mencionar a ideia de abundância em ambientes progressistas é frequentemente mal interpretado. Expressões como prosperidade, construção e crescimento são percebidas com desconfiança, associadas a conceitos como neoliberalismo, consumo excessivo e degradação ambiental. Na América Latina, especialmente, onde a percepção da escassez moldou a mentalidade de gerações e a redistribuição da renda é o mantra primordial, a resistência a essa linguagem é predominante.

E foi não no Sul, mas no Norte, que soou o apito de cachorro.

Nos Estados Unidos, uma nova abordagem progressista vem surgindo sob o nome o estranho nome de “agenda da abundância”. A mensagem é simples, porém contraintuitiva: não é viável repartir o que não foi construído. Sim, Delfim se acomodou nessa.

Indo mais além, segundo essa agenda, a justiça social depende da capacidade produtiva, a transição para energias limpas requer infraestrutura consolidada e o bem-estar duradouro demanda um Estado eficaz.

Ezra Klein, jornalista estrela do NYT, um dos defensores dessa perspectiva, não defende um Estado inflado, mas sim um “Estado visionário”, responsável por construir mais habitações nas áreas urbanas – tema muito sensível em áreas mais ricas nos EUA, investir em transporte público e viabilizar energias renováveis em grande escala. Um Estado executor, talvez fora de hora no espírito do tempo.

A noção de que o progresso está vinculado à disponibilidade de recursos públicos enfrenta resistência tanto de setores de esquerda quanto de direita. A direita desconfia do papel do Estado e do expacionismo fiscal, enquanto a esquerda – seja àquela vinculada aos temas da sustentabilidade ou os marxistas clássicos – ressentem da ideia de crescimento contínuo, essencialmente capitalista.

No Brasil, essa dicotomia se revela de modo ainda mais problemática espremida entre os fiscalistas ortodoxos obcecados por cortes de gastos e os heterodoxos que depositam suas esperanças em utopias em forma de “nova matriz econômica” e teorias monetárias modernas. Um país dividido entre o receio da contábil e a crença do pensamento mágico.

No cerne desse debate talvez resida um viés ético-estético: o apego à escassez. Uma mentalidade que enaltece a contenção e encara o crescimento como pecado.

Sem um plano que promova a abundância, restam apenas medidas improvisadas, soluções paliativas e promessas desconexas sem real capacidade de implementação.

Embora desconfortável, a ideia de reintegrar a noção de abundância ao discurso progresssista poderia ser libertadora, não como sinônimo de excesso, mas como a disposição de ampliar a percepção do essencial — e alcançável. Urbanismo denso, energia limpa em larga escala, um estado de bem-estar sólido financiado por aqueles que têm condições.

A escassez, afinal, pode não ser uma condição natural, mas em grande parte uma escolha — ou uma falta dela. Talvez, um caminho possível para o avanço político de uma nova agenda inclusiva seja a mudança de foco, abandonando a gestão varejista e provinciana da res publica como um emaranhado de carências, para vislumbrar um todo potente e, assim, imaginar uma política da abundância.

Conceitos, Autores e Livros

No debate brasileiro, a noção de abundância ainda soa desconectada, talvez por estarmos presos entre dois extremos. De um lado, o fiscalismo tecnocrático, que trata o superávit primário como doutrina inquestionável. Do outro, uma heterodoxia voluntarista que flerta com a ilusão de um crescimento redentor, sem considerar as restrições práticas da produção e as barreiras institucionais.

Enquanto o Brasil permanece ancorado nos mantras dos anos 90 e 2000, uma nova geração de pensadores nos EUA está construindo uma agenda pragmática, ecológica e ambiciosa: a política da abundância. Abaixo, uma seleção de livros e autores essenciais para entender esse campo emergente.

Ezra Klein & Derek Thompson – Abundance (2025)
Nessa obra que marca o tom da nova agenda, Klein, colunista do New York Times, e Thompson, editor da The Atlantic, expõem o “déficit de construção” nos EUA: moradia inacessível, infraestrutura obsoleta, transição energética travada. Segundo eles, o problema não é escassez real, mas um sistema que bloqueia o progresso em nome de regulações, interesses locais ou ideologias austeras. Abundância, aqui, é a capacidade de construir com rapidez, acessibilidade e impacto social.

Matthew Yglesias – One Billion Americans (2020)
Com um título provocativo, Yglesias defende que os EUA só poderão competir geopoliticamente e garantir qualidade de vida se expandirem radicalmente sua capacidade em moradia, transporte, imigração e energia. Uma defesa contundente da densidade urbana, da eficiência estatal e da expansão demográfica como estratégia.

Mariana Mazzucato – The Entrepreneurial State (2013) & Mission Economy (2021)
Figura central para quem busca repensar o Estado para além do binarismo “mínimo vs. gastador”. Mazzucato propõe um Estado com visão de missão, capaz de liderar transformações tecnológicas e sociais com ousadia, e não apenas regulação. Um Estado que investe e assume riscos é condição para qualquer ideia de abundância.

Kate Raworth – Doughnut Economics (2017)
Raworth oferece uma bússola ética e visual para pensar prosperidade dentro dos limites ecológicos. Sua “economia da rosquinha” mostra que é possível romper com a lógica do crescimento infinito e, ao mesmo tempo, garantir bem-estar. A abundância regenerativa, não extrativista.

Aldana Cohen, Lux & Riofrancos – A Planet to Win (2019)
Um manifesto pelo Green New Deal com foco em justiça social, diga-se, uma bandeira derrotada dos democratas em 2022. Os autores argumentam que habitação pública, energia limpa e transporte coletivo devem ser a base de uma nova economia — não como sacrifício, mas como expansão inteligente do bem-estar coletivo.

O Brasil entre o fetiche da austeridade e o voluntarismo míope

Por aqui, o debate ainda gira em torno de “gastar menos” ou “crescer a qualquer custo”. A política pública, um deserto de dados, melhores práticas e evidências, tem contorno de fetiche ideológico.

De um lado, os economistas do superávit como fim em si mesmo, que tratam o “corte de gastos” como um gesto de virtude moral— mesmo diante de um país que nunca construiu o básico: infraestrutura moderna, sistema de transporte funcional, política habitacional ambiciosa, transição energética organizada. Austeridade virou não um remédio, mas uma identidade moral.

A crítica ao neoliberalismo, por sua vez, raramente apresenta alternativas objetivas de transformação produtiva, urbana ou ecológica.

Assim, seguimos sem um vocabulário de futuro. Falta o que essa abordagem, como todo ranço, por assim dizer, estadunidense, pode fornecer: um horizonte progressista materialista, propositiva e empreendedora.

Durante décadas, o debate econômico foi sequestrado por dois extremos igualmente paralisantes. No Brasil, a ideia de abundância ainda soa quase obscena.

Do outro, os herdeiros de uma heterodoxia encantada com milagres: a “nova matriz econômica” apostou em crescimento via consumo, subsídios e desonerações sem enfrentar os gargalos estruturais. O resultado foi o que já sabemos: inflação, estagnação e uma recaída conservadora.

Ambos os lados falham em formular uma agenda de prosperidade concreta, material e viável. Como se abundância fosse um palavrão — ou uma ilusão.

Roberto Mangabeira Unger: “O Brasil precisa se reinventar em vez de se adaptar”

Filósofo, ex-ministro e pensador incômodo para todas as tradições, Mangabeira Unger talvez seja um dos poucos intelectuais brasileiros a propor uma “agenda de abundância” com sotaque próprio. Ele defende que o país não deve copiar modelos prontos — seja do Norte Global ou do passado desenvolvimentista —, mas reinventar suas instituições, reorganizar sua economia e apostar na imaginação política como ferramenta concreta de transformação.

Em seus escritos, Unger aponta que o Brasil está preso entre uma elite que não quer abrir mão de privilégios e uma esquerda que teme ousar. Para ele, a alternativa não é mais Estado ou menos Estado, mas um Estado experimental, capacitado, organizador de energia social latente.

Essa visão dialoga com a tese central deste texto: o Brasil não precisa escolher entre fiscalismo estéril e populismo sem rumo. Precisa sim de um projeto nacional que transforme sua capacidade de construir — moradias, infraestrutura, bem-estar, novos mercados, novas formas de produzir e viver

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