Reli esses dias, num artigo publicado na Folha de S.Paulo, Roberto Mangabeira Unger, filósofo, teórico, político e, provavelmente, o mais provocador pensamento político brasileiro. Unger apresenta uma análise contundente dos últimos trinta anos do país. Alí, ele pintava um retrato sombrio: desde Fernando Collor de Mello até Jair Bolsonaro, o Brasil estaria preso em um ciclo de mediocridade econômica e inércia social, resultado de escolhas políticas equivocadas e de uma falta de imaginação institucional.
Sua crítica é afiada, suas propostas são ousadas e seu tom, como de costume, é carregado de urgência. No entanto, como ocorre frequentemente com Unger, há uma tensão palpável entre o magnetismo de suas ideias e os desafios práticos de sua realização. Sua visão para o futuro do Brasil, embora intelectualmente sedutora, carrega ecos de autoritarismo que ele próprio talvez rejeitasse.
Unger começa com uma avaliação implacável do desempenho brasileiro nas últimas três décadas. Para ele, o país sucumbiu a uma tríade de falhas estruturais que sufocaram seu potencial.
A primazia do equilíbrio fiscal e a obsessão por controlar a dívida pública e a inflação, argumenta Unger, sacrificou investimentos em setores produtivos. O resultado é um crescimento per capita anual de menos de 1% entre 1990 e 2020, uma queda vertiginosa em relação à média de 4% registrada entre 1940 e 1980.
Com o neologismo do “Pobrismo”, Unger critica um sistema de transferências sociais que, embora ofereça uma rede de proteção aos mais pobres, não promove mobilidade social nem inclusão na economia produtiva. É uma denúncia de políticas assistencialistas que funcionam como paliativos, mas não como motores de transformação.
Aqui, um parênteses, não posso deixar de lembrar do “Melhorismo”. Na voz de outro provocador, Plinio de Arruda Sampaio, desancava seus opositores nos debates presidenciais que participou. Segundo Plínio, a mediocridade da política se encerrava no desejo por soluções ao alcance de todos, as pequenas melhorias nos serviços ou processos executivos das políticas públicas, ao fim e ao cabo, todas submersas à “agenda neoliberal” que se apropriou da vida pública.
Voltando a Unger, o Brasil, segundo ele, tornou-se excessivamente dependente de commodities — agricultura, pecuária e mineração — em detrimento de uma base industrial diversificada e tecnologicamente avançada. Essa vulnerabilidade às oscilações do mercado global teria travado o progresso do país.
Unger resume esse período com uma concisão devastadora: “Os pobres receberam transferências sociais; as corporações, seus direitos adquiridos; os grandes negócios, crédito subsidiado de bancos públicos; e os compradores de títulos do Tesouro, taxas de juros inigualáveis que permitiram a produtores fracassados prosperar como rentistas. A corrupção, centrada no nexo entre dinheiro e política, foi apenas um subproduto de uma co-optação generalizada. Agricultura, pecuária e mineração pagaram a conta”. É uma descrição que captura, com precisão cirúrgica, a mediocridade econômica do Brasil — um ponto de partida que, por si só, já justifica a atenção dedicada ao texto.
Diante desse diagnóstico sombrio, Unger propõe uma alternativa “produtiva e inclusiva”, estruturada em cinco eixos principais:
- Qualificação do Aparelho Produtivo: Ele sugere mobilizar instituições públicas como Sebrae, Senai e Embrapa para elevar a competitividade e a inovação das empresas brasileiras, com foco na economia do conhecimento.
- Resgate da Força de Trabalho: Unger defende novas regulamentações trabalhistas para combater a informalidade e a precariedade, integrando os trabalhadores à economia formal.
- Transformação da Educação: Ele imagina um sistema educacional mais analítico e capacitador, que prepare os cidadãos para um mundo em constante mudança.
- Políticas Regionais: Propõe um federalismo cooperativo que adapte estratégias de desenvolvimento às necessidades específicas de cada região.
- Construção de um Estado Eficiente: Unger sonha com um Estado que colabore com a sociedade e a federação, priorizando governança experimental e inovação institucional.
À primeira vista, essas ideias são atraentes. Elas abordam questões crônicas como o subinvestimento em capital humano, as disparidades regionais e a ineficiência burocrática. Mas, como em todo projeto ambicioso, os detalhes — ou a ausência deles — são o que realmente importa. Se a visão de Unger é, sem dúvida, grandiosa, sua ambição desprovida de pragmatismo pode ser um veneno, especialmente em um país tão politicamente fragmentado e economicamente vulnerável quanto o Brasil.
A defesa da “inovação institucional” é particularmente inquietante. Embora ele a apresente como um passo essencial para uma sociedade mais dinâmica e inclusiva, ela traz consigo o risco de derivar para o autoritarismo. Afinal, quem define o formato dessas novas instituições? A solução institucional racional para implementá-las em uma democracia de poder disperso e frequentemente paralisado por disputas é quase uma impossibilidade.
A ênfase de Unger na liderança pública virtuosa — figuras capazes de transcender as corrupções mesquinhas do status quo e executar reformas radicais — ressoa com uma tradição filosófica antiga. É o ideal do rei-filósofo, o déspota esclarecido que resolve os impasses com um golpe de genialidade. Mas a história nos ensina que tais ideais raramente sobrevivem ao contato com a realidade. Do experimento de Platão em Siracusa às aventuras mais recentes na América Latina, o limite entre liderança visionária e excesso autoritário é tênue demais para ser ignorado.
Os riscos de sua abordagem são inegáveis. A defesa da “inovação institucional” e da liderança virtuosa, embora atraente em teoria, é perigosa na prática. A história do Brasil, como a de tantas nações, é um alerta sobre como esses ideais podem ser apropriados por figuras menos altruístas
Além disso, a crítica de Unger ao “pobrismo” e sua rejeição às transferências sociais como meros paliativos subestimam os benefícios concretos que essas políticas trouxeram a milhões de brasileiros. Programas como o Bolsa Família, apesar de suas imperfeições, tiraram famílias da pobreza extrema e funcionaram como uma tábua de salvação em momentos de crise. Descartá-los como parte de um “regime de co-optação” é ignorar a complexidade da política social em um país onde a desigualdade ainda é abissal. Desvalorizar políticas sociais existentes ignora os avanços reais que elas propiciaram, ainda que não sejam soluções definitivas.
Unger não poupa os atores políticos brasileiros em sua análise. Ele qualifica Bolsonaro como “o mais recente fantoche no projeto fracassado da elite”, um símbolo de uma agenda falida que perpetua os erros do passado enquanto atiça divisões culturais. O moribundo PSDB, por sua vez, seria o grande responsável pela “desviação” das últimas três décadas, uma força política que não aprendeu com seus equívocos e talvez busque governar por procuração. Já o PT de então, foi reduzido a uma relíquia regional, banido do poder nacional e carente de autocrítica. A história incumbiu em contrariá-lo no terceiro Lula, embora seja fato que Lula e PT são fenômenos ao um tempo indivisíveis e opostos. Sem Lula, o PT, de fato, tende a virar relíquia.
Essas caracterizações têm seu fundo de verdade. O governo Bolsonaro foi marcado por uma gestão econômica desastrosa (não na avaliação subalterna do “mercado”, é claro) e por uma retórica polarizadora, enquanto PSDB e PT lutariam para oferecer uma visão clara para o futuro.
Ainda assim, as observações de Unger parecem estranhamente distantes da dinâmica real da política brasileira. Sua proposta de uma nova alternativa, construída “dentro da Federação, fora do governo federal”, é nebulosa e utópica. Quem lideraria esse movimento? Como ele ganharia força em um cenário dominado por interesses arraigados?
Por outro lado, o diagnóstico de Unger sobre os últimos 30 anos do Brasil é, em grande parte, acertado. O país de fato estagnou, preso em um ciclo de baixo crescimento, alta desigualdade e disfuncionalidade política. Suas propostas, ainda que ambiciosas, oferecem um ponto de partida para repensar o modelo de desenvolvimento brasileiro.
No fim das contas, a visão de Unger é ao mesmo tempo inspiradora e perturbadora. Ela nos lembra que os desafios do Brasil exigem pensamento audacioso, mas também que esse pensamento precisa ser ancorado em uma compreensão profunda das realidades políticas e sociais do país.
À medida que o Brasil se aproximava das eleições de 2022, quando publicado o artigo, a questão não era apenas se as ideias de Unger poderiam ser implementadas e por quem. Mas também se deveriam. Algo que permanece quando estamos às portas da eleição 2026. Assim como o deserto de liderança e o vazio de ideias.
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