A liberdade de expressão experimenta, hoje, uma crise muito mais ligada à forma de operação das plataformas digitais do que uma eventual repressão estatal. Essas empresas controlam o fluxo de informações por meio da tecnologia e lucram isentas de responsabilidade pelo que é dito e como é dito em seus espaços. A falta de accountability das plataformas é a verdadeira ameaça ao direito de opinião, superando os perigos tradicionalmente associados a governos, sejam eles autoritários ou não.
Liberdade de Expressão na Era Digital
A boutade de Millor Fernandes, “livres como um táxi”, dita numa abafada tarde carioca, ganhou uma ressonância oracular na era digital. Seja o táxi de antanho ou o Uber contemporâneo, desliza pelas avenidas numa miragem de autonomia, seu trajeto invariavelmente ditado por forças externas. A analogia espelha com precisão a crise atual da liberdade de expressão: uma liberdade ostensiva, porém fundamentalmente condicionada não tanto pela censura de governos, ditatoriais ou não, mas pela arquitetura de plataformas digitais. Estas corporações capturaram o fluxo informacional através da tecnologia, monetizam-no intensamente, e, crucialmente, se eximem da responsabilidade cívica sobre o que é dito e como é disseminado, configurando a principal e mais insidiosa ameaça ao livre exercício da opinião.
Todos sabemos já. Ao desbloquearmos o smartphone, somos instados a intervir, acreditando exercer nossa voz sobre a questão curda ou a carência por um emoji de uma pessoa querida, sem perceber que navegamos rotas predeterminadas por algoritmos. Como as reações químicas que, dizem, intercedem sobre o livre-arbítrio, governam sutilmente nossas interações.
Pippa Malmgren, economista com experiência no Conselho de Segurança Nacional dos EUA, diagnostica este fenômeno com a acuidade de quem antevê terremotos: a seleção artificial de vozes e opiniões, orquestrada por estas plataformas sem a devida accountability sobre quem ou o quê merece amplificação, suplanta a ideia de um mercado natural de ideias. A ágora pública sonhada pelos pioneiros da internet, hoje controlada por entidades com imenso poder e pouca responsabilidade, não sobreviveu duas décadas.
E assim, somos todos condutores atendendo a chamados alheios, por vias traçadas por outrem. O gesto trivial de fotografar um café alimenta uma economia onde a própria opinião se converte em mercadoria para quem detém a tecnologia do fluxo.
Ao pé de algum escritório descolado de Big Techs, talvez um cartaz numa livraria independente poderia citar Erich Fromm: “A questão não é liberdade de alguma coisa, mas liberdade para alguma coisa.” O psicanalista, exilado do nazismo, compreendia a liberdade não como mera ausência de coerção – seja ela estatal ou algorítmica –, mas como a presença de possibilidades significativas, erodidas quando a esfera pública é privatizada sem contrapartidas.
Esta distinção é crucial. A liberdade de postar, comentar e compartilhar, quando filtrada por algoritmos que visam maximizar o engajamento para fins de monetização, transmuta-se numa fachada para um novo tipo de confinamento. Os estímulos digitais, comparáveis aos mecanismos de recompensa dos cassinos, aprisionam-nos em “gaiolas de ouro”: ambientes confortáveis, mas intrinsecamente restritivos e, sobretudo, explorados por prepostos do interesse de acionistas.
Durante o Brexit, Malmgren observou o esfacelamento das narrativas tradicionais e a consequente perda de confiança pública nas instituições. Sem este alicerce, e com as comportas da informação geridas por plataformas que abdicam da responsabilidade editorial, a liberdade de expressão converte-se num exercício de gritar ao vácuo, onde as vozes mais estridentes inundam o discurso e monopolizam o espectro do debate.
A relação com a informação é como beber água numa mangueira de incêndio: um dilúvio de 231 milhões de e-mails, 16 milhões de mensagens de texto e 575 mil tweets por minuto, impelindo-nos a recuar para bolhas de conforto onde a realidade é convenientemente filtrada.
Os sistemas de mídia social, projetados para o engajamento em detrimento da informação, privilegiam conteúdo polarizador. Não por desígnio ideológico direto, mas pela sua eficácia em reter a atenção, que é o ativo monetizável.
Concomitantemente, o jornalismo tradicional, ainda que capturado por seu interesses comerciais e políticos, mas que já foi pilar da deliberação pública e instância histórica de editoria informacional, definha. Nos EUA, o fechamento de 2.511 redações desde 2004 gerou “desertos de notícias”. O Brasil espelha esse mesmo desafio. Como financiar tal espaço quando o público está cativo de um ecossistema que oferece informação “gratuita”, cujo custo real é a ausência de responsabilidade sobre sua veracidade e impacto?
A proliferação de teorias conspiratórias é um sintoma agudo desta erosão. Quando 73% dos americanos, segundo a Universidade de Chicago, percebem as teorias da conspiração como “fora de controle”, testemunhamos não um fenômeno marginal, mas uma busca desesperada por sentido num cosmos informacional caótico.
Malmgren sugere que algumas dessas teorias funcionam como “canários na mina de carvão”. O busílis reside na impossibilidade de discernir o sinal do ruído quando todas as vozes são tecnicamente “livres”, mas sistematicamente distorcidas por algoritmos opacos e por uma lógica que ignora o bem público.
As plataformas digitais, se me permitem uma perspectiva heideggeriana, manifestam o Gestell: o enquadramento tecnológico que reduz tudo – opiniões, dados, indignações – a recursos exploráveis, convertidos em métricas e lucros. Um “recurso”, como se o mundo fosse um estoque ou depósito, sempre pronto pra ser usado. E, se tudo é só ferramenta, todos somos peças.
Os que advogam a liberdade de expressão como valor absoluto, no fundo a usam como fachada para um modelo que a subverte: monetizam cada interação, extraindo valor da nossa expressão sem internalizar as responsabilidades cívicas pelas suas vastas consequências sociais. É nesta ausência calculada de accountability, mais insidiosa e penetrante que a censura estatal direta – que opera de forma visível e contestável –, que reside o cerne da crise da liberdade de opinião.
Sartre veria nisso uma forma de má-fé coletiva: a consciência da manipulação coexistindo com a performance da autonomia. Immanuel Kant argumentaria que, sem espaço para o debate racional, a verdadeira liberdade perece.
A crítica de Uri Berliner, ex-editor da NPR, à sua antiga casa por abandonar a objetividade, reflete o paradoxo central: a suposta liberdade digital floresceu em paralelo à degradação das condições para uma expressão significativa, precisamente porque aqueles que controlam os canais de expressão se recusam a assumir o ônus dessa posição.
A ameaça à expressão genuína, reitera-se, não emana primordialmente da censura estatal tradicional, mas da ausência fundamental de responsabilidade civil e editorial das plataformas tecnológicas que capturaram e hoje governam o fluxo informacional global.
Elas erodem a autonomia individual e coletiva sob o manto de um discurso emancipatório.
Duas vias despontam no que tange ao impacto editorial: a regulamentação, impondo transparência sobre os algoritmos e accountability robusta às Big Techs, e a alfabetização digital crítica, capacitando os cidadãos a navegar o pandemônio informacional com discernimento.
Igualmente se impõe limitar a integração obrigatória entre propriedades: a nuvem, o provedor de email, a IA, mercado online e os sistemas de logística. As MAG7 — Microsoft, Apple, Google (Alphabet), Amazon, Meta, Nvidia e Tesla — detêm fatias dominantes em cada um desses setores, promovendo um ecossistema fechado onde o usuário se torna prisioneiro de infraestruturas interdependentes. Essa concentração de poder tecnológico compromete a concorrência, fragiliza a soberania digital e transforma a liberdade de escolha em uma ficção regulada por interesses corporativos.
Vale notar, como contraposição, que na China, a situação revela uma lógica distinta, embora igualmente concentradora. Lá, a integração entre serviços digitais — como os ofertados por Alibaba, Tencent e Baidu — também cria ecossistemas fechados, mas sob controle social. A simbiose entre Big Techs e governo garante controle direto sobre dados, conteúdo e infraestrutura digital. A liberdade de expressão, nesse contexto, é subordinada não à lógica algorítmica do engajamento, mas aos imperativos ideológicos.
Retomando Fromm, a liberdade autêntica não reside em fazer o que se quer, mas em possuir as condições para desejar o que verdadeiramente vale a pena. Para resgatar essa liberdade, é imperativo reconhecer o “táxi digital” como o veículo condicionado que é, e exigir que seus proprietários e operadores assumam responsabilidade integral pelo seu funcionamento e impacto.
A questão que persiste, enquanto o algoritmo aguarda nossa próxima interação, é: quem, de fato, conduz nossa expressão na era digital, e como podemos responsabilizá-lo? A resposta definirá não apenas a qualidade do nosso discurso, mas a própria substância da nossa liberdade.