Liberdade em disputa

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Didático Milei ao mostrar do que se trata o libertarianismo. Para tipos como ele e sua base de fãs acríticos, trata-se da liberdade individual de explorar, cooptar e se impor sobre o outro. Esse barbarismo disputa com a civilização o significado de “liberdade” em sociedade.

A incompatibilidade subjacente ao lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, sobretudo entre as duas primeiras, define as grandes placas tectônicas da ideologia desde sempre. Afinal, ou se é livre, ou se é igual. Uma das partes terá que ceder para um equilíbrio fraterno.

Liberais radicais, libertários e cercanias, advogam que igualdade significa totalitarismo. Só a força e a injustiça restringem o ímpeto industrioso do indivíduo livre. A ideia de “liberdade”, no entanto, fica presa à sua dimensão econômica, monetizada. Ser livre para explorar.

O que devemos buscar? Uma sociedade livre ou indivíduos livres? Essa é uma das questões centrais para resgatar um arranjo social saudável, ao menos numa visão liberal-democrática. De fato, as elites burocráticas, políticas e econômicas se alienaram em seus privilégios.

A urgente reforma do Estado Democrático de Direito, com todo risco aí contido, precisa ser proposta e conduzida pelos que o defendem e não por quem deseja sua destruição. É preciso conter as “castas”, parafraseando Milei. Mas para salvar o Estado, não para salvar os indivíduos.

O que ler a respeito

Wolfgang Streeck (1946-): Sociólogo alemão que, em obras como “How Will Capitalism End?” (2016), analisa criticamente as tensões entre capitalismo democrático e liberdade individual. Ele examina como as instituições democráticas são afetadas pela ideologia do livre mercado e discute as consequências sociais do neoliberalismo.

Nancy Fraser (1947-): Filósofa americana que trabalha extensivamente com questões de justiça social e reconhecimento. Em suas obras recentes, como “Cannibal Capitalism” (2022), ela analisa as contradições do neoliberalismo e propõe uma visão de justiça que integra redistribuição econômica com reconhecimento cultural.

Fraser expõe o mecanismo perverso: o capitalismo financeiro captura a democracia sem disparar um tiro. Transforma a liberdade em mercadoria, a igualdade em obstáculo. O Estado, esvaziado, torna-se gestor da desigualdade que deveria combater.

A retórica libertária mascara sua própria contradição. Ao negar o papel civilizatório do Estado, legitima poderes privados ainda mais arbitrários. Streeck demonstra: o esvaziamento da política alimenta oligarquias que se apresentam como defensoras da liberdade.

A verdadeira questão não é Estado versus Mercado, mas qual arranjo institucional permite equilibrar autonomia e cooperação. O desafio é construir uma liberdade que não se reduza à soma de licenças individuais, nem se dissolva em coerção coletivista.

As “castas” denunciadas pelo discurso libertário são produto do mesmo sistema que pretendem radicalizar. A financeirização da vida social corrói tanto a democracia quanto o mercado livre que dizem defender. A liberdade vira privilégio de poucos.

O resgate do Estado Democrático exige mais que reformas cosméticas. Demanda reimaginar a liberdade para além do individualismo proprietário. Uma liberdade que se realiza no comum, não contra ele. O equilíbrio é possível, mas requer mais política, não menos.