Imaterialidade do mérito

O discurso da meritocracia seduz incautos e sábios. Embala a visão de quem cresceu ouvindo que esforço recompensa, que madrugar garante o pão, que trabalhar duro é o suficiente. Essa é uma ideia que se instala com ainda mais força quando se vislumbra algum acesso ao consumo: a troca do ônibus pela moto usada, o iphone pago em mil boletos, o churrasco de domingo que já não é só no aniversário da avó.

Seviciados pelas redes sociais, são milhões consumindo o discurso “não nasci rico, e cheguei aqui sozinho”. E a partir daí, nasce a esperança de que qualquer um poderia chegar — bastaria querer. A pobreza, então, vira uma escolha, um pensamento. À parte o grau de sadismo que contabiliza na falta de empenho o resultado da “performance” econômica de alguém, políticas que reconhecem desigualdades estruturais são lidas como favoritismo, como desconfiança da capacidade individual.

Nesse espaço, o mérito vira dogma. E o Estado, inimigo.

Esse novo sujeito político — que rejeita o papel de vítima, mas também resiste ao rótulo de culpado — emerge das periferias com um ethos próprio: empreende, consome, busca visibilidade e quer reconhecimento. Ele quer uma cidade que o veja, não que o salve. Não se identifica diretamente com o “empreendedor de palco”, mas também não se reconhece no discurso militante tradicional.

Se em décadas passadas era a revolução que nos esperava na esquina, num ilusório desejo coletivo, hoje, é a redenção pessoal monetizada quase ao alcance das mãos. Falta um pouco de persistência.

É claro, negar a meritocracia difusa virou bandeira entre progressistas. Um binônio de precarização do trabalho, sempre acompanhado do insulto elitista preferido: “CEO de MEI”.

A crítica a esse novo estado de coisas, no entanto, não acompanhada de alternativa tangível, soa vazia para quem, legitimamente, só quer trabalhar e ser reconhecido. A aparente (e mal informada) recusa ao assistencialismo não é sinal de alienação, mas de um desejo profundo de pertencer a uma ordem social que lhe é vendida cotidianamente, onde o esforço é visto como virtude.

O desafio está em construir uma linguagem política que não reduze a noção de prosperidade individual, ainda que distorcida, como exceção ou desviante, mas como ponto de partida para repensar o papel do Estado.

Uma política que valorize a potência do sucesso individual em suas várias camadas e impactos, superando a armadilha da culpabilização.

Porque a disputa hoje não é apenas de classe, renda ou de narrativa. É uma disputa de lugar no mundo.

Realizado em 2017, o estudo da Fundação Perseu Abramo, “Percepções e valores políticos nas periferias de São Paulo”, investigou a manifestação prática desse ethos em moradores das periferias urbanas de São Paulo. A pesquisa qualitativa revelou uma população marcada por um forte desejo de ascensão social, valorização da ordem, da disciplina, do trabalho duro e da meritocracia — ainda que reinterpretada à luz da realidade concreta da exclusão.

As famílias das periferias constroem sua visão de mundo baseadas em trajetórias individuais de superação, distanciando-se tanto do discurso vitimista quanto das políticas assistencialistas. O Estado, quando lembrado positivamente, é associado à presença concreta de serviços (como escolas e postos de saúde) e não a uma ideia abstrata de “direito”.

Apesar de críticas à corrupção e à elite política, a política institucional é vista com desconfiança, sendo muitas vezes substituída por formas locais de organização moral e religiosa. A igreja evangélica — especialmente as vertentes neopentecostais — aparece como espaço de acolhimento, rede de apoio, orientação ética e, ao mesmo tempo, de promoção de autoestima e mobilização comunitária.

A pesquisa desmonta a ideia de que a periferia seria majoritariamente “de esquerda” por afinidade natural com pautas sociais. Na verdade, o que predomina é uma ética da responsabilidade individual, com forte apelo conservador nos costumes, e pragmatismo econômico — moldando uma base social sensível a discursos de ordem, segurança e prosperidade individual.

O ethos neopentecostal e seu impacto na cultura política da periferia

A substituição do ethos católico pelo ethos neopentecostal em amplos setores da população periférica não é apenas uma mudança religiosa, mas uma mutação simbólica com implicações profundas na cultura política brasileira.

Enquanto o catolicismo popular operava por meio de uma teologia da resignação e da culpa, vinculada a uma ideia de sofrimento redentor e coletividade passiva, o neopentecostalismo reconfigura esse imaginário em torno da agência individual, da superação e da recompensa. O fiel deixa de ser uma ovelha e passa a ser um guerreiro espiritual e econômico, travando batalhas contra forças malignas, vícios, e sobretudo contra a pobreza — vista não como destino, mas como mal a ser vencido com fé, trabalho e determinação.

Esse ethos é extremamente funcional para uma sociedade neoliberal: legitima a desigualdade como falha de mérito e recompensa o sucesso como sinal de graça divina. A teologia da prosperidade oferece sentido, autoestima e um projeto de vida a quem foi abandonado pelas promessas do Estado e da esquerda tradicional. O culto ao esforço individual, à disciplina e à autoridade moral substitui o apelo à solidariedade ou à justiça social estrutural.

Politicamente, esse imaginário cria um terreno fértil para discursos conservadores que se apropriam da linguagem da honestidade, da ordem e da família como valores morais inegociáveis. A adesão popular a certos candidatos ou partidos não ocorre apesar de seu conservadorismo — mas justamente por ele estar alinhado com o ethos dominante.

Trata-se de um deslocamento cultural que a esquerda, em geral, negligenciou. Ao ignorar os vínculos morais e simbólicos que formam a base da vida cotidiana nas periferias, muitos partidos perderam a capacidade de dialogar com uma população que busca, acima de tudo, dignidade e reconhecimento — ainda que pelas vias do mercado, da religião e da estética do sucesso.

Reconectar-se politicamente com as periferias não exige renúncia a princípios progressistas, mas sim uma revisão profunda das linguagens, formas de escuta e meios de presença. O novo ethos dominante nas bordas da metrópole valoriza autonomia, esforço, prosperidade e reconhecimento social. O discurso político que pretende se enraizar nesses territórios precisa abandonar a retórica abstrata da “inclusão” e assumir um projeto mais direto: libertar as pessoas da humilhação cotidiana.

O que fazer?

Há aí uma necessidade de reconstrução da linguagem, do reconhecimento e da conquista. O discurso político precisa sair do campo da denúncia (e da renúncia) e entrar no campo da validação. A população periférica não quer ouvir que está sendo explorada — ela já sabe disso. O que deseja é ser reconhecida como protagonista, empreendedora de si mesma, alguém que venceu obstáculos. A política precisa se apresentar como ferramenta para acelerar esse processo, não como muleta nem como tutela.

A esquerda falhou, muitas vezes, em oferecer uma visão aspiracional clara e, assim, uma ideia de projeto de vida. O neopentecostalismo, por outro lado, entrega uma narrativa de sentido, esforço e vitória. É necessário transformar o entendimento das políticas públicas como potencializadoras de trajetórias possíveis e concretas de ascensão, não apenas promessas de redistribuição, mas em instrumentos de protagonismo: casa própria, acesso ao crédito, educação profissionalizante, empreendedorismo, a base comunitária, etc. não mais entendidas como benesses do governo, mas como conquistas cidadãs.

Outro tema espinhoso é o da valorização da ordem, sem cair no autoritarismo. Segurança, disciplina e autoridade não são demandas irracionais: são respostas a um cotidiano marcado pelo medo e pela instabilidade. Um discurso progressista inteligente deve propor ordem com justiça, segurança com cidadania, disciplina com oportunidade. Isso exige romper com a caricatura da “desconstrução permanente” e oferecer estabilidade afetiva, material e simbólica. Está aí o desastre anunciado das escolas cívico-militares que, mesmo sendo uma estrovenga sem qualquer base pedagógica, tem demonstrado adesão, inclusive entre os segmentos mais vitimados pela violência do estado.

Reocupar a preseça nos territórios — não apenas nas redes.  O vínculo político se constrói com presença física e afetiva. As igrejas neopentecostais não conquistaram a periferia com marketing, mas com ocupação territorial, escuta ativa e apoio prático. Um projeto político com ambição de maioria precisa reconstruir a ideia de comunidade. Comitês populares, centros culturais, projetos de apoio jurídico, oficinas de capacitação — tudo isso é mais político que o discurso sobre política.

E, por fim, mas não por último, re-imaginar o imaginário da prosperidade. Não se trata de combater a estética do sucesso, mas de ressignificá-la. É possível falar em vitória e conquista sem cair no moralismo do empreendedorismo individual. A proposta deve ser clara: ninguém vence sozinho. O mérito precisa de estrutura, e o esforço individual só floresce num solo fértil.

Um Estado inteligente, aliado ao povo, é o adubo dessa prosperidade.