Excepcionalismo de performance em Quantico

O nome em si evoca algum mistério. Ao que leio, pode tratar-se de uma corruptela de Pamacocack, a aldeia Doeg que um dia existiu às margens do Potomac. Versões atribuem, talvez, a um termo indígena para algo como “junto ao grande rio” ou “lugar da dança”. Nos filmes, sempre havia imaginado “Quantico” como algo relacionado à física quântica. Por óbvio, não faz sentido algum. É uma etimologia curiosa para o bastião da projeção de poder estadunidense, onde a famosa base do Corpo de Fuzileiros-Navais é circundada por outros quartéis de agências do governo como o próprio FBI. A força militar incravada numa terra que já foi viva com movimento comunal e agora é reaproveitada para a disciplina das doutrinas de segurança nacional.

Se os EUA e outros países da América foram construídos sobre o apagamento e apropriação de legados indígenas, Quantico, na Virgínia, permanece como um emblema de como uma nação dança com suas contradições: celebrando orgulho enquanto pisam sobre origens esquecidas.

Quantico foi o local escolhido, pelo Secretário da Guerra Pete Hegseth para proferir um longo discurso para dezenas de generais e almirantes de alta patente das Forças Armadas — um espetáculo que se desenrolou como um sonho de patriotismo performático, deixando muitos dos oficiais reunidos num silêncio estoico que disse muito.

Hegseth, que havia anunciado a convocação de seus liderados como um chamado para restaurar a pureza combativa, ofereceu menos um briefing estratégico e mais uma palestra tipo TED-Talk temperada com guerra cultural. Caminhando pelo palco com o gestual de um apresentador de TV — suas raízes na Fox News evidentes em cada floreio — bradou a cantilena contra as invasões “woke” que, em sua visão, amoleceram os brios militares.

Num arco narrativo já conhecido por quem acompanha a vida política dos EUA, Hegseth reforçou uma ideia que encanta a extrema-direita, com seus “chegas” e “bastas”: Chega de iniciativas de diversidade, equidade e inclusão. Basta de “meses de identidade”. Chega de “caras de vestido”. Basta de “adoração” às mudanças climáticas.

Mas foi além. Criticou “generais gordos” cambaleando pelos corredores do Pentágono, decretou o retorno a um certo “alto padrão masculino” de aptidão física de combate — implicando que mulheres agora devem alcançar os mesmos níveis de desempenho dos homens ou se afastar do serviço — e prometeu acabar com isenções para o uso de barba, que beneficiariam desproporcionalmente militares negros. Tecnicamente, nada disso é fato ou relevante na realidade das Forças Armadas dos EUA.

“Preparem-se para a guerra e preparem-se para vencer”, entoou, reformulando o Pentágono implacavelmente letal, onde mérito supera cotas e inimigos aprendem o acrônimo vulgar FAFO: fuck around and find out.

Veio então Trump com sua peculiar divagação cambaleante, que oscilou entre vanglórias sobre submarinos nucleares e sugestões de que “cidades perigosas” como Chicago sirvam como campos de treinamento para tropas contra o “inimigo interno” — uma frase que pairou no ar como uma granada partidária, jogada no santuário apartidário da tradição militar. Deteve-se um momento numa digressão um tanto constrangedora sobre a “n word”, num duplo sentido com as palavras “negro”e “nuclear”.

Os chefes militares, arrancados de seus postos globais a grande custo e prazo curto, sentaram-se em silêncio rígido. Seus rostos eram máscaras de tolerância profissional escondendo o que comentadores internos descreveriam como “profundo desconforto” — uma cena embaraçosa de normas militares corroídas pelo teatro político.

Esta convocação em Quantico espelha uma doença mais profunda na psique estadunidense: a ilusão da glória perdida, um mito nostálgico em que a nação imagina um passado mais puro, intocado pelas complexidades modernas. A visão de Hegseth remete a uma suposta era dourada de masculinidade inflexível e meritocracia, livre do “lixo ideológico tóxico” do progressismo.

Mas, involuntariamente, expõe a fragilidade do próprio excepcionalismo norte-americano — a crença de que os Estados Unidos são singularmente destinados, uma “cidade sobre a colina” – evocada pelo puritano John Winthrop, governador da colônia de Massachusetts Bay, em sermão dirigido aos colonos britânicos a bordo do Arbella, em 1630 – ordenada a liderar com superioridade moral.

Observadores críticos do que parecer ser um ocaso, há muito desmontam essa narrativa, apontando para os pecados fundacionais da república — o legado da escravidão, expansões imperiais, intervenções revestidas de retidão — como evidência de que a ficção de grandeza é menos um tesouro de virtude do que uma ficção conveniente afeita a justificar os excessos do poder. Com seus éditos de gordofobia e purgas de gênero, Hegseth performou essa ilusão no palco, como se expurgar ruídos culturais pudesse ressuscitar uma “América” mítica de vitórias decisivas e força incontestável.

Constrangidos, a face dos generais exalava o vazio: um exército feito para transcender a política, agora plateia de seu sequestro. Seu desconforto é um microcosmo de uma nação lidando com divisões internas que o mito fundacional deveria, em tese, superar.

Quase impossível assistir ao evento de Quantico sem pensar num episódio de Saturday Night Live.

A performance de Hegseth em Quantico pareceu roteirizada para a abertura do SNL — um secretário delirante eviscerando “tropas gordas” e fantasmas do politicamente correto, seguido por um presidente encostado no púlpito como se estivesse num balcão de bar a jogar conversa fora. Mas, ao contrário do esquete, no mundo real não há riso que libere a tensão. Só resta o desanimo dos obrigados a aplaudir a sua própria diminuição.

SNL é como um ritual de sábado à noite que, em sua quinquagésima temporada de longevidade cultural, rivaliza com a própria resistência do animus do país. Nascido em 1975, entre cinzas de Watergate e do Vietnã, o programa é uma navalha satírica, zombando das piedades do establishment e da autoimagem que desmoronou sob escândalo e derrota.

Seus esquetes — do desastrado Gerald Ford de Chevy Chase ao espelho de Kamala Harris por Maya Rudolph — documentam as falhas imperiais contidas na hipocrisia cultural. A persistência do SNL, mesmo ao longo dos extenuantes anos 80 de Reagan e do mandato caótico de Trump, encarna outro tipo de excepcionalismo, o cômico: uma crônica ao vivo dos absurdos da nação, onde figuras políticas são satirizadas não como vilões, mas como arquétipos da tolice.

Essa justaposição revela uma via de mão dupla.

A perenidade bipartidária do SNL mostra que a democracia ainda pode se sustentar pela sátira, transformando a “cidade sobre a colina” em palco de autocrítica. Já o discurso de Quantico sinaliza o risco da decadência — uma tentativa de ressuscitar uma ilusão perdida que reforça como o excepcionalismo sempre foi performativo: um teatro de narcisismo moral a justificar intervenções externas que agora se voltam para dentro, contra inimigos domésticos imaginários.

O nome Quantico, quando evoca um “lugar da dança”, oferece a ironia final: o movimento ritual onde a coreografia do poder tropeça entre nostalgia e incerteza. Nesse espetáculo, a ilusão não persiste porque é acreditada, mas porque é encenada. Um Saturday night Special no teatro do declínio, onde talvez o riso — amargo, desconfortável — seja a última resposta honesta possível.

Como não poderia deixar de ser, SNL fez sua versão do encontro.