Como tudo que vem em ondas, uma leva de cronistas supostamente independentes provoca seus leitores com o indefensável. Bem menos interessantes do que os malabarismos retóricos de Jacques Vergès, o polêmico advogado francês conhecido por defender terroristas nos tribunais e retratado no ótimo documentário “O Advogado do Terror” de Barbet Schroeder, alguns comentadores resolveram que é chegada a hora de defender George W. Bush.
É bastante claro nesse momento que Bush encerrará seu mandato com uma das piores avaliações da história. Se a guerra do Iraque, cuja exposição de motivos foi construída sobre uma falácia – a existência de armas de destruição em massa – parece de fato estar chegando ao fim, é bastante improvável reconhecer alí o surgimento uma república estável, laica e pró-ocidente. Muito menos uma democracia. Os avanços na contenção da violência, ao contrário do pretenso resultado positivo do “surge“ tão defendida por John Mccain, deve-se sim ao derramamento de dinheiro – legal e ilegal – para conquistar as elites locais, antes apaziguadas por Saddam Hussein. Nesse aspecto, se as coisas encaminharem bem no Iraque, W. Bush ficará no máximo com o troféu “A História me Absolverá”.
Em relação à crise econômica, é bem verdade que ela foi gestada no governo Clinton. Mas suas raízes republicanas foram plantadas por Ronald Reagan, e W. Bush, desde o início de seu primeiro mandato já dispunha dos sinais de que a tal “bolha sub-prime” estouraria um belo dia. Empurrou com a barriga imaginando que ela poderia estourar no colo do próximo presidente, ao mesmo tempo em que aumentava gastos militares e do próprio governo. Fica difícil isentá-lo de suas responsabilidades.
Agora, os comentadores pró-Bush citam seu programa presidencial de ajuda a África na questão da AIDS/DST. Há uma diversidade de equivocos no forte viés ideológico que norteou a Casa Branca nos últimos 8 anos. Mesmo que os valores – estima-se na casa de 25 bilhões de dólares – sejam bem superiores se comparados a qualquer outro programa presidencial fora dos EUA e reconhecendo-se que, para quem está à mingua, qualquer ajuda é ajuda, o programa em si não resiste a uma análise mais aprofundada.
Via de regra, quando essas cifras milionárias, nesse caso bilionárias, são direcionadas para países em situação crítica ou catastróficas, apenas pequena parte chega efetivamente ao destino. A grande bolada fica com as grandes corporações fornecedoras de suprimentos, logística ou transporte e com os consultores e funcionários das organizações multilaterias, em sua maioria origem européia, norte americana ou japonesa. Os bilhões convertidos em ponto de dose de remédios diminuem o problema mas não dão um único passo em direção a autosuficiência, a criação de uma infraestrutura capaz de uma solução real da crise.
A política de Bush para a prevenção da AIDS se dá no campo moral, imoralmente. Há um exercício teológico de convencer, por meio de benesses financeiras, pela abstinência sexual. Alguns informes dão conta inclusive da falta de camisinhas nas regiões onde o programa presidencial foi posto em prática, como parte da estratégia de convencimento.
O programa não contempla uma discussão sobre a questão da quebra de patentes dos retrovirais e permissão de instalação de plantas capazes de suprir esses mercados com produção local. Igualmente, é a importação de remédios das detentoras das patentes, a peso de ouro, que deu-se a parte mais eficiente do projeto, justamente a do assistencialismo puro, ou seja, o tratamento dos já infectados. É irrecusável a tentação de não imaginar uma lógica perversa na desproporção da não escolha da prevenção com camisinhas, produtos baratos e de baixa tecnologia, em favor do tratamento pós-infeção com remédios caros vindos diretamente da matriz.
Mohammed Yunnus no seu livro sobre a experiência na implantacão do microcrédito em Bangladesh, revela em determinado momento sua recusa em receber algumas dezenas de milhões de dólares da banca internacional, exatamente porque esses recursos estariam atrelados à mudança da politica de crédito a pequenos tomadores que ele havia implantado. Na prática, a banca via uma oportunidade em eliminar aquelas práticas financeiras exóticas, chantageando com dinheiro numa situação de calamidade pública.
Na experiência de Yunnus, os recursos iriam direto para a base da pirâmide, sem que os sábios de gravata fossem solicitados com seus indefectíveis powerpoints para revelar os segredos da magia financeira, passados por seus mestres do MBA. Yunnus e Bangladesh naquele momento ficaram sem a grana dos bancos internacionais e aquela temporada de enchentes foi bem mais difícil do que poderia ser. Mas o banco de Yunnus sobreviveu e continua a emprestar seus trocados.