A IA que Falava Javanês

No conto clássico de Lima Barreto, O Homem que Sabia Javanês, o astuto Castelo engana um barão e conquista um cargo diplomático ao fingir dominar uma língua exótica e pouco conhecida. Ele não sabe javanês, claro, mas sua fachada é tão convincente que ninguém questiona. A história, escrita em 1923, é uma sátira mordaz sobre a superficialidade e a valorização de credenciais falsas.

Hoje, mais de um século depois, poderíamos parafrasear a trama com um título atual: A IA que Falava Javanês. Porque, assim como Castelo, as inteligências artificiais modernas têm um talento peculiar para nos convencer de que sabem mais do que realmente sabem — e isso traz riscos que vão além de uma simples farsa.

Verdades Fabricada ou a IA Fala Javanês

Imagine uma IA que, com a mesma desenvoltura de Castelo, gera um texto impecável, cheio de jargões técnicos, referências aparentemente eruditas e argumentos bem encadeados. Você lê, se impressiona, compartilha. Mas, por trás da fachada, sabemos, há apenas um amontoado de padrões estatísticos, sem uma verdadeira compreensão ou embasamento. O perigo de tomar conteúdos gerados por IA como verdade absoluta é real. Essas ferramentas, por mais sofisticadas que sejam, não “sabem” no sentido humano. Elas combinam dados de treinamento — textos, artigos, livros — para criar respostas plausíveis. São, em essência, mestres da retórica, mas nem sempre da substância.

O problema não é a IA em si, mas nossa tendência a confiar cegamente em suas palavras. Assim como o Barão de Jacuecanga não questionou o suposto domínio de Castelo sobre o javanês, corremos o risco de aceitar respostas de IA sem escrutínio. Um estudo recente da Universidade de Stanford apontou que 60% dos usuários de ferramentas de linguagem confiam em suas respostas sem verificar fontes, mesmo quando o conteúdo contém erros factuais sutis. Em um mundo onde a desinformação já é uma epidemia, a IA que “fala javanês” pode amplificar narrativas enganosas, reforçar vieses ou simplesmente inventar fatos com uma convicção desconcertante.

A Padronização do Pensamento e o Risco de um Mundo sem Surpresas

Se o primeiro alerta de preocupação são as verdades fabricadas, o segunda é ainda mais terrível: uma irreversível padronização do conhecimento.

As IAs, por mais avançadas que sejam, operam com base no que já foi dito, escrito ou registrado. São, por definição, retrovisores. Seus dados de treinamento refletem o passado — ideias, estilos, perspectivas que já existiram. Embora isso permita respostas consistentes, também cria um risco de estagnação criativa.

Quando a massa de produtores de conteúdo recorrem às mesmas IAs para escrever artigos, criar roteiros ou mesmo compor músicas, o essencial da originalidade – o erro, a dissonância – se esvairá. As respostas tendem a convergir para um padrão médio, uma espécie de “média ponderada” do que já foi produzido. É como se a IA, ao tentar imitar a humanidade, nos condenasse a um looping eterno de ideias recicladas. Um relatório da MIT Technology Review de 2024 destacou que ferramentas de escrita baseadas em IA já estão levando a uma homogeneização de conteúdos online, com blogs, posts e até livros seguindo fórmulas previsíveis. A IA que fala javanês não apenas engana; ela pode nos prender em um mundo onde o novo é apenas uma recombinação do velho.

Lima Barreto, com seu humor afiado, nos alertou sobre a facilidade com que a aparência pode suplantar a essência. Hoje, as IAs são ferramentas poderosas, mas não infalíveis. Para não cairmos na armadilha da IA que fala javanês, precisamos resgatar a curiosidade crítica. Isso significa questionar respostas, verificar fontes e, acima de tudo, valorizar a criatividade humana — aquela faísca imprevisível que nenhuma máquina pode replicar.

A IA pode ser uma aliada no processo criativo, mas não protagonista. Como ferramenta de organização de ideias e de exploração de possibilidades, mas cabe ao produtor  garantir que o conhecimento não se torne uma camada de homogênea. Sempre que uma resposta de IA parecer perfeita demais, vamos lembrar de Castelo: às vezes, o que parece javanês é só uma boa história. E histórias, ainda que saborosas, nem sempre são verdadeiras.