O balanço

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Mirtes cruzava e descruzava as pernas à beira do lago. Hiperativa, a palma de sua mão esquerda chegava a sangrar com a mania de roçar as unhas contra a pele, bem na dobra da linha da vida. Sua experiência com tranquilizantes foi desastrosa. As rugas da face desabrocharam quando ainda era jovem e o vício de franzir a testa a cada mau pensamento lhe marcou duas avenidas de fora a fora. Só tinha maus pensamentos.


Quando não era isso, eram as pernas, como agora a beira do lago.
Observava o casal de velinhos tentando acompanhar a corrida do neto na outra margem. Os risos infantis do trio lhe agoniavam a alma. Os velinhos ofegantes espalmando o balão de volta para a criança. Só podia ser provocação. Franzia a testa, raspava a unha na linha da vida, cruzava e descruzava as pernas.
O vicio de cruzar as pernas ela adquiriu nas inúmeras vezes em que esteve no banco dos réus durante as audiências em que era acusada, pelo assassinato de sua prima Sueli.
Sueli vivia escondida com a família num rancho a uma centena de quilômetros de Porto Alegre. Cresceram juntas e chegaram a viver sob o mesmo teto depois do casamento de Sueli, mas a convivência difícil e as crescentes ameaças, ora de suicídio, ora de agressão levaram Sueli e a família para o interior.
Não foi um afastamento completo. Ciente da instabilidade emocional da prima, Sueli lhe mandava cartões carinhosos nas datas especiais, por vezes mandava entregar um bolo de pão-de-ló sem motivo. Bolo de pão-de-ló sem recheio, sem cobertura, um dos poucos prazeres de Mirtes.
Numa segunda-feira de abril de 1986, Sueli foi a Porto Alegre ver um médico. Um exame de rotina. Tinha 45 anos e nunca havia feito um exame de rotina. Resolveu visitar a prima. A essa altura, Mirtes já morava na velha casa semi-abandonada em que passaram a infância. O litígio da herança não permitia que nada fosse feito com o imóvel e numa rara concordância, a família achou por bem deixá-la morando lá. A degradação do casarão poderia ser retardada com alguém por perto, ainda que fosse Mirtes.
Quando pequenas, corriam ao redor da grande mangueira cujas raízes saltavam para fora da terra, formando quatro áreas delimitadas com perfeição. As regras do jogo inventado por Mirtes eram simples. Cada uma ficava numa área oposta e corriam em sentido contrário. Ganhava quem entrasse junto no território da outra. Sempre uma tarefa fácil para Mirtes, hiperativa e maiot, não dava chances para Sueli. A prenda era esfregar a cara da derrotada nas mangas apodrecidas esparramadas pelo quintal. Mirtes inflava de orgulho com a gosma amarronzada entupindo o nariz da prima. A mangueira oferecia um balanço, mas Mirtes o arrancava tantas vezes quanto ele fosse pendurado.
Não havia mais balanço naquela segunda-feira em que Sueli apareceu no casarão com uma pesada tábua de frios no lugar do bolo de pão-de-ló.
Mirtes decidiu naquela tarde que odiava presunto. Descruzou as pernas, levantou-se, foi até a mesa da cozinha e desferiu o primeiro golpe com a tábua de frios bem no meio da testa da prima. A imagem do sangue pela cara de Sueli devolveu o gostinho do creme marrom de manga podre de sua infância.
Mirtes surrou Sueli até morte e na mesma tarde enterrou ao numa das quatro áreas da mangueira, com a cara coberta com os frios, bem embaixo da onde deveria estar o balanço.
O corpo não foi encontrado. Mirtes nunca foi condenada.